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Um ano em Londres

Realeza? Status? Muito chá? A cidade que eu conheci não tem nada a ver com isso

Por Ígor Jales

Ígor Jales

Ao dia três de setembro de 2013, saí de Natal para o Aeroporto dos Guararapes em Recife, no carro do pai de um amigo. Só voltei a um espaço aberto catorze horas depois, saindo da estação Hendon Central, norte de Londres. Naquele momento, notei aqueles prédios em uma arquitetura totalmente diferente, diante da qual eu jamais estivera. Notei que aquele céu não tinha as mesmas cores nem o mesmo brilho; que o ar era totalmente diferente, frio. Que na linha dos meus olhos, transitavam pessoas cujas vidas poderiam ter sido todas ali; até falavam e pensavam em outro idioma. E me dei conta de que agora estava em outro universo; no qual viveria no ano que se seguia.

Um intercâmbio cultural foi um sonho que meus pais não teriam condições de realizar até bem recentemente. Chegar aos EUA, Canadá, Reino Unido, ou até o Japão era um sonho tão distante e etéreo para mim quanto ver a neve, ou até mesmo o próprio Papai Noel. E isto só veio a mudar quando tentei o processo do Ciência sem Fronteiras, programa de intercâmbio acadêmico do governo federal disponível para alunos da graduação e da pós.

University of East London
Fui parar na UEL, em Londres, Reino Unido. Morando num flat apertado, mas simpático em formato de fatia, em um prédio redondo. Pude estudar com um corpo de professores excelente, bem versados em programação visual, tipografia e semiótica, com uma bagagem teórica e cultural que transbordava sem esforço.

Nos mostraram as oficinas de impressão e corte a laser disponíveis para os alunos, estas até hoje ausentes na UFRN. Às sextas, recebíamos palestrantes de certo peso na área das artes gráficas aplicadas: fotógrafos como Laura Pannack, designers e tipógrafos como os do coletivo barcelonense L’Automàtica e até o cinegrafista Jonathan Glazer.

Anglofonia
A barreira linguística provou-se o maior dos desafios, naquele que era justamente o meu ponto mais forte. Contente ou não com minha comunicação na lingua inglesa, já tinha ido disposto a melhorá-la. Mesmo lá, usava meu tempo livre para estudar fonética, pronúncia e consumir mídia local.

Não investi muito em ter uma amizade com os brasileiros que compartilhavam a cozinha comigo, nem com ninguém na exclave de intercambistas da UEL. Perdi um sério poder de agregar conterrâneos, promover churrasco brasileiro (uma maravilha que compartilhamos com os argentinos e o mundo parece desconhecer), festinhas e, sobretudo, moral pra pedir silêncio.

Mas valeu a pena, eventualmente. Posso hoje dizer que perdi aquele nervosismo ao me comunicar com estrangeiros, pois tenho segurança da minha pronúncia, uma compreensão bem maior do idioma, fluência, com um resquício de sotaque britânico, e três bons amigos londrinos.

Rotina
Mas o que seria “um ano em Londres” na mente do leitor, se não uma referência simbólica? Realeza? Status? Muito chá? A Londres que eu conheci não tem nada a ver com isso.

Ela, primeiramente, me mostrou algo do qual sempre suspeitei: você não é melhor do que ninguém por estar lá.

A minha Londres é a Londres da humildade. Lugar de se fazer a feira de última hora a -2º C numa noite de inverno; de voltar carregando sacolas, a pé – ou de ônibus, nos dias de maior preguiça, digo, pressa. De aprender a cozinhar sozinho, de ligar para o encanador consertar o ralo do banheiro...

De ter de resolver pequenas burocracias sem ninguém em casa para perguntar como foi ou dar alguma orientação. A Londres de se esconder no próprio quarto comendo salgadinhos enquanto fazem uma festinha na cozinha e você não vê nenhum motivo para sair e conversar. De lavar o próprio banheiro, de por sua roupa nas máquinas da lavanderia no térreo e pagar com uma espécie de cartão pré-pago próprio. De virar noites fazendo trabalho e, sem tempo de fazer o café-da-manhã, ter de pegar um sanduíche frio com coca-cola na lanchonete cara da universidade.

Era a Londres de ser você, e ser como todo londrino: igual, por ser diferente. Mais um entre os punks, hipsters indianos e árabes, patricinhas muçulmanas, latino-americanos tagarelas, pedreiros ingleses, europeus mochileiros... Alguém comum ao final da equação.

A Cidade
Mas, sim; era também a Londres dos passeios de domingo pelo exótico mercado de Camden e seu canal encantador que ia dar no Regent’s Park. Da paz de fazer a caminhada ali, ou por um dos outros vários parques urbanos, como o Hyde; ou de um mini safari no parque de Richmond, no qual cervos perambulavam soltos próximos aos visitantes. A Londres dos vários museus do tamanho do Midway Mall, com entrada franca. De ir a um pub quase todo fim de semana e a bares de Narguilé com seus amigos ingleses de etnia indiana e paquistanesa. As possibilidades de lazer eram inúmeras.

É uma cidade enorme, de diversidade étnica inimaginável para um Brasil, que apesar de tão plural, vê-se como um só povo. Pessoas de diferentes origens conviviam juntas no trabalho, mas tendiam a viver separadas, até a se concentrar em vizinhanças diferentes. Com certa igualdade, ao menos: era comum ver negros e indianos de terno tanto de trabalho, quanto de ir para as noitadas. Aquilo me trazia sempre uma reconfortante sensação de justiça social.

E não é que hoje sinto um saudosismo até mesmo das idas à infernal rua Oxford, no centro? Ou das compras no WestField de Stratford, lotadíssimo? Aliás, os shopping centers de lá são só muvucas de gente bem arrumada – fuja, a menos que queira muito comprar algo específico. E o McDonald’s? O sebosão mais famoso, apenas! Posso atestar pela qualidade da comida, do ambiente lotado e mal cuidado, e até da gente que lá transitava. Que transgressão, não? Digo, a nossa, que após importarmos essas coisas, lhes conferimos tanto valor.

Conhecer o mundo
Óbvio que também fez parte da minha Londres as vantagens de se viver na Europa – como poder viajar pelo velho continente, e até ao norte da África, com as despesas e planejamento de quem vai de Natal a Tibau do Sul.

Fazendo certa economia e planejando bem, é possivel ter a experiência transcendental de entrar no templo da Sagrada Família, e viver as tantas outras monumentais obras de Gaudí em Barcelona. Ir ao labirinto da medina de Marrakesh, hospedado em albergue humilde e pegar uma van no dia seguinte para ir ao Saara, com um pernoite ainda mais rústico numa cabana berbere. Caminhar pela neve da Noruega. Ir para Veneza, hospedando-se num bangalô na periferia continental, pegando ônibus ao início dos dias para a cidadezinha ao mar. Conhecer a Majestade exótica dos prédios de Budapeste e se perder na incrível gráfia e sonoridade húngara que fascinou até Chico Buarque... Experiências culturais inestimáveis, que são como ouro, principalmente para os profissionais da indústria criativa.

Lembranças
Londres tinha algumas coisas bem próprias, das quais sinto falta, mas é difícil explicar.

Por exemplo, poderia desenvolver um longo parágrafo descrevendo as casas em estilo georgiano com tijolinhos vermelhos do subúrbio do norte da cidade. Mas nem a simetria lateral, as proporções áureas, nem o layout de casas de bonecas ressoariam igual em vocês… Talvez ajudasse se eu dissesse que foram as primeiras construções que vi desde que ali cheguei; e que à medida que se tornavam mais frequentes no meu caminho, também significava que eu estava me aproximando do flat da minha namorada – morena 100% natalense, não se enganem – em uma residência também no tal estilo arquitetônico.

É muito nostálgica a longa jornada de volta de lá de Colindale, no norte de Londres, ao meu lar em Beckton, no leste. Podia durar de 1h30 até 2h30 de metrô ou ônibus. Nos 30 min finais do trajeto pelo metrô, descia-se para trocar de trem numa estação a céu aberto. Geralmente, para pegar o próximo bastavam apenas cinco minutos de espera, sinalizados com precisão no letreiro digital, mas o frio fazia demorar dez vezes mais. A vista para a quadra de Canary Wharf e seus grandiosos arranha-céus me consolavam, me faziam sentir que a cidade, apesar de dormir ali ao meu redor, era poderosa e estava em vigília. Somente ao entrar no próximo trem é que o frio aliviava, somando-se à certeza de que de lá, bastava esperar ser deixado em casa.

Descia naquela vizinhança pacata das residências universitárias e percorria o frio congelante, passando pelos prédios redondos, e somente ao atravessar a porta de vidro, era abraçado pelo calor do isolamento térmico do prédio.

Subia as escadas, entrava no meu quarto e descascava aquelas camadas de roupas de até uns 5kg. Após me preparar para dormir, olhava da janela a vista da vila residencial uma última vez enquanto fechava as cortinas. Me jogava debaixo dos edredons e estava enfim dormindo confortável na minha suíte minúscula de 13m2 que eu chamava de casa. E fazia muito, mas muito sentido chamá-la assim.

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