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“Sou um amante da Ribeira”

Ao comentar a cena musical que explodiu no bairro nos anos 1990, o historiador Carlos Henrique Cunha explica porque a revitalização não deu certo e aponta caminhos para o poder público agir

Joâo Lobato/Divulgação

Em entrevista ao NÓS, DO RN, o autor de "Nos tempos do Blackout" (Jovens Escribas), fala sobre a relação com o bairro, especialmente a Rua Chile, local que abrigou bares e boates badaladas na década de 1990 e início dos anos 2000. A rua, que antes era vista como um lugar marginalizado, passou a ser visitada pela classe média e alta de Natal após a chegada do bar Blackout, em 1997. Nessa conversa, Carlos Henrique fala sobre a transformação da cena musical e lamenta que as obras de revitalização tenham ido por água abaixo.

Por que a Ribeira como tema de um livro?

Na verdade, eu sou um amante da Ribeira. Desde mais novo, com 16 ou 17 anos eu já frequentava o bairro. Antes mesmo de explodir a cena cultural, roqueira da Rua Chile, eu já dava umas passeadas pela Ribeira, pois já tinha alguns eventos mais undergrounds por lá. E quando abriu o Blackout, eu comecei a frequentar semanalmente. Então, sexta e sábado eu estava na Rua Chile. Geralmente não entrava nos bares, nas boates porque não tinha dinheiro, ficava pelo largo da Rua Chile, pois eu achava mais legal ficar lá fora do que dentro das boates. Eu gostava de passear pela Ribeira também durante o dia, achava tudo muito bonito. E quando entrei no mestrado de História, a discussão era a relação entre História e Espaços, e aí percebi a possibilidade de discutir essa relação entre um movimento cultural e como ele pode interferir na construção das imagens que são criadas sobre um determinado espaço. E eu lembrei da Rua Chile, porque ela é marcante na cidade de Natal. Ela é a primeira rua paralela ao Rio Potengi. E no mestrado eu fui me atrever a propor uma nova divisão da história da Ribeira, baseada, justamente, nessas imagens que são construídas. Então eu falei da Ribeira glamourosa, até os anos 20 e 30; a Ribeira boêmia dos anos 40, 50 até metade dos anos 60; a Ribeira marginal dos anos 70 e 80; e aí entra ali nos anos 90, a Ribeira musical, alternativa; e a Ribeira Pop depois dos anos 2000. Então eu percebi a possibilidade de escrever algo com o viéis acadêmico, mas não ligado à parte técnica, porque tem muita gente da área de arquitetura escrevendo muita coisa sobre a Ribeira. (Leia artigo na pág. 14). Eu pensei a Ribeira enquanto um palco de vivências. Vou estudar a Ribeira, mas a partir de como ela era vivida, como as pessoas se relacionavam, não como os projetos determinavam.

Quando frequentava os eventos da Rua Chile, já pensava em escrever algo sobre esse cenário musical?

Ia para Ribeira como a maioria das pessoas iam, pois ali era um point de lazer, e principalmente pra mim que sempre gostei muito de Rock, era a fronteira Rock de Natal. No começo dos anos 90 tinha muitos eventos em bares de Ponta Negra, mas depois a coisa mudou e muitos bares fecharam. A Ribeira era a única alternativa para quem gostava de Rock. Eu ainda não estava pensando nessa questão de escrever algo, mas eu já estava ingressando na faculdade de História. Mas a ideia de escrever sobre a Ribeira veio mais com o mestrado.

Como você descreve esse processo de mudança na cena musical da Ribeira?

Eu venho tentando entender, primeiro, como o Rock foi parar na Ribeira. Porque o bairro era boêmio, tinha essa questão dos cabarés. No livro, eu mostro justamente como o Rock se transfere de Ponta Negra pra lá. Porque quando a maioria dos bares de Rock fecham em Ponta Negra, o pessoal que gostava de Rock ficou sem ter para onde ir. E foi, mais ou menos em 1996, que dois bares foram abertos: o Casarão e o Bimbos, que eram na Tavares de Lira, Dr. Barata. E começou a rolar alguns eventos de Rock, como o show de Raimundos, uma banda que já despontava nacionalmente. Bandas de Rock aqui de Natal mais amadoras começaram a tocar também. Então o pessoal começou a ir muito para a Ribeira, mas era algo ainda muito precário. A gente entrava nas casas e tinha medo de que elas desabassem. E Paulo Ubarana foi o pioneiro a perceber um nicho econômico interessante. O prefeito da época, Aldo Tinoco, tinha inaugurado, em dezembro de 1996, o programa Fachadas da Rua Chile, onde ele trocou parte do calçamento, iluminação. Em março de 1997, Paulo Ubarana inaugurou o Blackout. Era um estabelecimento diferente, organizado, e apesar de ser uma coisa mais alternativa, era bonito, interessante. Lá aconteceram muitos eventos, quase todos os dias. Mas ainda era um público muito ligado ao Rock, ao Blues. Era um pessoal na casa dos 30 e poucos anos. E depois a Rua Chile explodiu. Vários outros bares abriram. Em 2000 foi o ponto alto, com a chegada da Downtown, boate de Recife. O dono foi a um show no Blackout e percebeu aquela potencialidade. A Downtown era diferenciada, tinha uma estrutura boa, iluminação, era mais cara que as outras. Na época a maior boate de Natal era o Hooters. Então, mesmo quem não curtia Rock ia à Rua Chile, porque a rua deixou de ser um local de roqueiro, de bicho doido e passou a ser um dos espaços mais movimentados da noite de Natal. Então houve uma transferência, aos poucos, e num prazo de três ou quatro anos a Ribeira já estava no roteiro da noite de muita gente.

No seu livro, você fala que a Ribeira e a Rua Chile passaram por um forte processo de decadência e desvalorização econômica e cultural perante a população natalense. Você acha que os moradores de Natal mudaram seu olhar com relação ao bairro após essa mudança na cena musical?

Antes dessa cena, as pessoas que diziam que iam à Ribeira certamente ouviam alguém dizer: “Você vai fazer o que ali? Lá só tem marginal, drogado, puta. Não tem nada que preste”. E depois que explodiu essa cena, os eventos da Rua Chile começaram a sair na Tribuna do Norte, Diário de Natal. As bandas que tocavam na Ribeira, a Inácio Toca Trumpete, Oficina, Boca de Sino, Uskaravelho, começaram a tocar em eventos, casamentos, festas de 15 anos. Então a Rua Chile ganhou uma nova imagem para a população de Natal. Mas, infelizmente, isso não se refletiu numa atração de moradores. A questão residencial continuou decadente. Mesmo no auge da mudança na cena musical, não houve um acréscimo no número de moradores significativo na Ribeira. Os programas de retomada de Centros Históricos no Brasil, como o Pelourinho, em Salvador, provam que a retomada do espaço ocorre quando existe a questão habitacional. O Pelourinho ficou como um pólo cultural, mas ele tem uma abertura nacional, é diferente. Se você for lá em qualquer dia no ano, está lotado. No caso da Ribeira, seria interessante um incentivo à questão habitacional, o que não houve. O Governo se limitou a reformar uns casarões na Rua Chile. As casas das outras ruas paralelas, como a Dr. Barata, Frei Miguelinho, estão caindo aos pedaços. Até porque, nos próprios decretos voltados para a retomada da Rua Chile, eles falam dessa questão habitacional, dizem que vai haver incentivo, mas esse incentivo nunca veio.

O que havia nos tempos do Blackout que não há hoje?

Tínhamos, além do Blackout, o Armazém do Cais, o bar A Lata, o Bar das Bandeiras, o Bronks - tudo na Rua Chile -, o Yolle Bar. Na Tavares de Lira tínhamos O Casarão, o Bimbos, todos ligados ao Rock. Fora isso, também tinha os eventos de reggae, no largo. Desses aí, todos fecharam. Só restou o Centro Cultural DoSol, de Anderson Foca, que vive dessa questão cultural ligada à Ribeira. Mesmo assim ele só abre para eventos, não é algo constante. Mas hoje em dia, à noite, você não tem como dizer “Vou lá na Ribeira”, porque não tem uma coisa regular. Dos bares que tinham nos tempos do Blackout, todos fecharam.

Que mudanças você gostaria de ver na Ribeira, no que se refere ao cenário musical e cultural?

A Ribeira tem um potencial cultural muito forte. Fui ao Pelourinho este ano e percebi uma coisa muito interessante: eles cercam uma área, não o bairro todo, mas uma área que a Prefeitura escolheu que é toda monitorada por câmeras, tem segurança. Pensando sobre a Ribeira, isso seria totalmente possível. Se pegassem o trecho da rua Silva Jardim com a Duque de Caxias, indo até a praça Augusto Severo e fechando em relação ao Rio, criavam uns quatro quarteirões grandes, que a Prefeitura poderia abrir esse espaço a partir das 17h, quando o comércio fosse fechando. Aquilo se tornaria um centro cultural. E nós temos uma população em Natal que é ávida pra ir à Ribeira. Mas como vou sair de casa à noite para ir à Ribeira se eu não sei pra onde ir? Vou ficar rodando naquele bairro extremamente escudo, perigoso, sem ter a certeza que vai ter algo? Vou ter que ficar procurando rua por rua algum barzinho? Não custava muita coisa para a Prefeitura. Ela poderia garantir um incentivo fiscal para alguém que queira investir na Ribeira, pelo menos durante um período de cinco ou dez anos, um incentivo significativo. A Prefeitura também poderia conseguir uns cavaletes para cercar esse perímetro, colocar umas câmeras que ofereçam ao povo mais segurança. Tem gente que gostaria de investir na Ribeira.

Qual a diferença entre os projetos de revitalização em outros sítios históricos brasileiros e a Ribeira?

No Recife Antigo, eles começaram o programa de retomada do Centro Histórico no final dos anos 80, o Pelourinho foi no final dos anos 70, São Luís, no Maranhão, no final dos anos 70, no Rio de Janeiro, na Lapa, foi no final dos anos 80, São Paulo também começou nos anos 80. Natal ficou muito atrasada nisso aí. Por volta de 1990 é que foi criada, pela então prefeita Wilma de Faria, a Zona Especial de Proteção de Preservação Histórica (ZEPH), no Plano Diretor de Natal. Então foi criado, oficialmente, o Centro Histórico de Natal, que pega parte da Cidade Alta e Ribeira. Começaram a acontecer uma série de seminários, onde arquitetos, urbanistas, artistas, empresários, todo mundo que tinha interesse começou a participar. E diante de tantos debates, só conseguiram restaurar a Rua Chile. É muito pouco. Não tenho dados técnicos para confirmar essa informação, mas dizem que foi um material de péssima qualidade que foi usado na fachada das casas. Era só uma maquiagem mesmo e disseram que um ano depois o reboco estava caindo. O pessoal discute e quando vai colocar em prática, faz o mínimo, o mais fácil, o mais rápido. Temos a restauração do Porto que vai ser transformado num ponto de desembarque para turista. Seria interessante um turista desembarcar do lado da Rua Chile, dar de cara com um Centro Histórico todo arrumado, com bares. O cara já ficava ali pela Ribeira, almoçava ali, já tomava um drink. A Rua Chile era marcada por uma coisa noturna, mas se você chegar em Olinda de manhã ou de tarde, tem toda uma estrutura aberta. A Ribeira é o único bairro da cidade que é totalmente saneado, tem banco, de lá a pessoa pega ônibus para qualquer ponto da cidade. Ou seja, tem uma estrutura que poucos bairros de Natal têm. Mas não existe interesse, disposição de investir. Hoje o mundo vive uma luta desesperada por turistas e as cidades que têm o mínimo de potencial, estão investindo pesado.

Por que que o processo de revitalização da Ribeira veio por água abaixo com o fechamento do Blackout?

O Blackout era o carro chefe porque ele abria direto. Quase todo dia da semana ele funcionava, inclusive na segunda-feira. O Blackout movimentava a Ribeira sempre. O Downtown, era mais nos fins de semana. E quando o Blackout fechou, a coisa perdeu essa regularidade. Não tinha mais novidade a cada momento. E, historicamente, Natal é uma cidade de modismos. O MADA, que era um grande evento na Ribeira, se transferiu para o Imirá e começaram a surgir outros pontos de festas em Natal. Além disso, muita gente que estava lá na Rua Chile não estava por uma fidelidade cultural, estava lá porque era um point. E no momento em que foram surgindo outros, as pessoas foram saindo. Tem vários bares aqui em Natal que, há três anos, você não encontrava uma vaga pra estacionar. Hoje você pode ir a qualquer hora que tem vaga. Outra coisa é que faltou, por parte da Prefeitura, um incentivo maior com relação à segurança. Depois de um certo tempo, a Rua Chile se tornou um polo muito atrativo, frequentado por jovens de 18 anos, de carro novo, cheio de dinheiro. Então muita gente começou a ser assaltada.

Os próprios ladrões viram ali uma possibilidade de roubar. A prefeitura não investiu em iluminação também. Eles iluminavam a Rua Chile, mas nem todo mundo estacionava lá. E se tivesse evento no largo mesmo, era fechado e tinham que botar os carros lá fora, em ruas que não eram iluminadas. As pessoas começavam a ficar com medo daquilo. Então começaram a ir para outros estabelecimentos que ofereciam essa segurança.

Como foi o processo de construção do seu livro e quais desafios encontrou?

Quando a gente vai fazer um trabalho onde quer captar as vivências de um determinado lugar, a gente tem dificuldade porque isso não está em documentos. Nós, historiadores, temos uma dependência muito forte de documentos, um fetiche. A gente vai se metendo naqueles arquivos, com um monte de jornais cheios de poeira. Então, quando eu pensei nesse tema, me deparei com esse problema e falei com meu orientador que queria captar como as pessoas se viam, por que iam para a Rua Chile? O que esperavam encontrar lá? Quando estavam lá, como se sentiam? Como viam as outras pessoas? E quem estava lá na Rua Chile, como viam as pessoas que não iam para lá? E quem não ia, como via os que estavam na Ribeira? Meu orientador dizia que eram perguntas muito legais, mas queria saber como eu iria responder. Então fui procurar nas pessoas que estavam lá. Fiz um total de 30 entrevistas, procurei pessoas que tocaram em bandas, pessoas que investiram em bares na Rua Chile, jornalistas. Analisei os cadernos de Cultura do Diário de Natal e Tribuna do Norte, que eram os veículos de maior circulação, para ver como a mídia estava divulgando a Rua Chile. Essa parte mais recente deu muito trabalho, porque quando pegamos o que uma pessoa disse e compara com que outra falou, compara com um documento, percebemos que há diferença. Mas isso também faz parte da minha análise, porque quero saber o que a pessoa pretende ao construir essa ideia.

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